2006/07/03

Entrevista a Fernando Savater no "Mil Folhas"

Pelo seu manifesto interesse didáctico, continuo a citar, do suplemento "Mil Folhas" inserido no Público de 1 de Julho, a entrevista de Fernando Savater:

"[...]
P. - Em "A Infância Recuperada" associava uma certa "decadência" da arte de narrar à decadência da memória, à perda do valor da memória nas sociedades contemporâneas. Trinta anos depois como vê esse problema?
R. - Há uma diferença muito importante, creio, entre a época em que escrevi "A Infância Recuperada" e a actual: o aparecimento da Internet, dos jogos de computador, das consolas de vídeo. Tudo isso apareceu como algo de novo e também como uma espécie de recuperação da imaginação ou de formas de imaginação diferentes. A minha mulher, que é muito afeiçoada aos videojogos, fez-me ver que normalmente se passa do romance ao jogo: "O Senhor dos Anéis", por exemplo. Disse-me ela: e se fosse ao contrário, e se pegássemos no esquema de um jogo de computador e o trasladássemos para um romance? Efectivamente, essa é uma forma de narrar diferente. Quando escrevi "A Infância Recuperada" predominava o tipo de romance sem argumento, quase sem narração, baseado na linguagem. Mas com o passar dos anos foi regressando o argumento, a história. Talvez, em certa medida, por causa desses videojogos, que são micro-histórias. A recuperação da história era o que eu procurava fazer nesse livro.

P. - Também fazia uma distinção entre a arte da narração e o romance burguês e realista...
R. - Porque a arte de narrar tem uma relação com a épica, com a lenda; pretende, de alguma maneira, contar histórias que não sejam costumes mas valores. A narração clássica, digamos, do que trata é de converter um valor, uma virtude, um perigo, em lenda. Em contrapartida, o romance burguês tradicional trata de descrever costumes e problemas entre os costumes da cidade: matrimónio, adultério, etc. Eu pretendia, evidentemente, recuperar a outra narração, a narração num sentido clássico. Creio que essa narração está hoje muito mais presente do que quando escrevi "A Infância Recuperada". Nessa altura isso era visto como algo muito infantil. Hoje, inclusivamente os autores mais respeitados literariamente voltam a recuperar o afã de contar histórias: Mario Vargas Llosa, Coetzee, Saramago contam histórias.

P. - Isso terá alguma coisa que ver com uma certa revalorização da oralidade, nomeadamente por causa do predomínio dos meios audiovisuais?
R. - O que se passa é que há também uma revalorização de dimensões, digamos, alternativas da realidade. Estamo-nos a acostumar a ver construções alternativas da realidade. Por exemplo, fotografias em que aparecem personagens que não estiveram presentes [na cena fotografada]. As histórias nos [jogos de] computadores misturam personagens de histórias diferentes numa história única. É algo que eu também faço no meu romance. Há cada vez mais como que uma espécie de disponibilidade das histórias: dispomos delas, não há uma separação rígida entre histórias de uma época e de outra, misturam-se personagens de diversos contextos num relato novo. Hoje, o romance popular é comum que seja um romance em que aparece Aristóteles resolvendo um caso policial...

P. - Não foi a isso que se chamou, a certa altura, pós-modernidade?
R. - Não sei se isso é a pós-modernidade, mas algo dela deve ter. Bem, isto é moderno no sentido em que há uma certa ironia no tratamento de todos os géneros literários. Não se pede ao romance histórico que não faça concessões à fantasia e que cada género tenha a sua própria norma. Há muito mais flexibilidade irónica no tratamento dos géneros.

P. - "O Grande Labirinto" é um romance de citações, alusões e homenagens. O que tem que ver também com a memória, nomeadamente com a sua memória de leitor...
R. - O grande labirinto é a memória. O grande labirinto é o tempo. De uma maneira ou de outra, vivemos nesse labirinto de referências, de histórias, em que se mistura a ficção, o que recordamos, a nossa vida, as vidas de outros que incorporámos à nossa. Esse é o labirinto em que nos movemos. Eu sempre quis que os meus livros não sejam um ponto de chegada mas um ponto de partida. Ou seja, que a partir de um livro meu se descubram outros livros diferentes. O melhor elogio que podem fazer a um livro meu é dizerem-me: "Li o teu livro e graças a ele descobri a obra de tal outro autor." Gostaria que, ao chegar ao fim de "O Grande Labirinto", o leitor ficasse com vontade de ler histórias de Sherlock Holmes ou de Oscar Wilde, ou de conhecer mais sobre a vida de Leonardo da Vinci... Ou seja, gostaria que o livro o remetesse a outras coisas.

P. - "O Grande Labirinto" não homenageia só os romances de aventuras (e argumento). Cita Shakespeare, Voltaire, Lao Zi, Jan Patocka, etc. É um resumo do seu cânone pessoal?
R. - Sim, todas as personagens pertencem ao meu cânone. Quer dizer: tenho por todas elas algum tipo de afecto especial. E também tentei que fossem de épocas contrastantes. Uma grande livraria, ou uma biblioteca, é como uma farmácia em que há remédios para todas as enfermidades, para a melancolia, para o aborrecimento... O que eu queria era assinalar essa variedade de remédios que há na literatura.

P. - O livro tem um certo ar compósito e mecânico, de acumulação e repetição de um mesmo pretexto narrativo: as "viagens" fantásticas que as personagens empreendem...
R. - Cada uma das viagens trata, minimamente, de um problema contemporâneo: o terrorismo, a ciência ao serviço da guerra, o fanatismo religioso, a violência sobre as mulheres, etc. Evidentemente, insisto, o que fiz foi pegar no mecanismo dos jogos de computador. Ou seja, não é um romance no sentido habitual do termo, mas sim um desses jogos multimédia convertido em romance.

P. - Escreveu este livro a pensar num público específico, juvenil?
R. - Um livro como este pode ter leituras diferentes. Eu pensei num público que tenha entre 12 e 14 ou 15 anos, um público adolescente. Mas é claro que, quando penso em adolescentes, penso em mim como adolescente. Não sei como são os adolescentes agora, talvez sejam muito diferentes. Eu penso no adolescente que fui, no tipo de livros de que poderia gostar o adolescente que eu fui. Mas creio que um leitor adulto pode ler outros níveis no livro, pode lê-lo com um pouco mais de humor ou com um pouco mais de busca do segundo sentido que pode haver no livro.

P. - A literatura "para crianças e jovens" costuma ser editada em colecções específicas. Tal não acontece com este livro. Isso pode trazer-lhe um público diferente?
R. - C. S. Lewis, o amigo de Tolkien que escreveu bastante sobre literatura juvenil, dizia que literatura juvenil é aquela de que também os jovens gostam. Quer dizer que um livro de literatura infantil não é um livro que só agrada às crianças, porque um livro que só agrade a uma criança não vale a pena nem para a criança. A literatura infantil é aquela que pode agradar também a uma criança. "A Ilha do Tesouro", de Stevenson, é um romance de que também os jovens podem gostar, mas que pode agradar a qualquer um de nós. Evidentemente que não pretendo comparar, mas gostaria que o meu livro, sendo pensado para que os jovens possam desfrutá-lo, não excluísse outro tipo de leitores.

P. - Os livros pensados para jovens costumam ter um problema: o didactismo...
R. - Eu não vejo nada de mal no didactismo. Quer dizer, o que é didáctico não tem de ser aborrecido. Sou daqueles que, quando liam os romances de Salgari, gostavam que ele descrevesse como eram os bosques e como eram as árvores, e que havia árvores cujos frutos se podiam comer... As crianças pequenas gostam, digamos, de saber que o lobo come o Capuchinho Vermelho, mas que, no final, o caçador resgata-a da barriga do lobo. A moral da história faz parte da própria história. Não creio que vá contra ela. A ideia de que a história não tem de transmitir nenhum valor creio que não corresponde àquilo que é a verdadeira narração.

P. - Defende, portanto, a possibilidade de a ficção poder ser educativa?
R. - Eu sinto-me, antes de mais, um educador, o que me preocupa mais é a educação. Gostaria de ser um grande artista, mas não creio que o seja. Escrevi livros que ajudam os educadores e que ajudam a educar de uma maneira que não seja aborrecida, fastidiosa, que não converta a educação numa tortura. Porque eu creio que a educação não é uma tortura, mas um dos momentos mais apaixonantes da vida. A educação é apaixonante e deveria apaixonar os que estão a educar-se. O que tento é escrever livros capazes de fazer os jovens apaixonarem-se pela educação.

P. - Mais do que um escritor, é então um professor que escreve livros?
R. - Em primeiro lugar sou um leitor. Se me pagassem para ler, eu não precisava de ser mais nada. Mas como não me pagam para ler, há que fazer algumas outras coisas. Considero-me um educador, fundamentalmente, um professor. Creio que tenho uma certa capacidade de relação com as crianças e com os adolescentes, talvez porque de algum modo continuo muito próximo deles. Um bom mestre tem de ser um pouco ignorante. Ou seja, os grandes sábios não são bons professores porque não compreendem a ignorância dos outros. Tenho companheiros muito sábios, de filosofia, que são muito maus professores, porque não entendem que os outros não compreendam as coisas, parece-lhes que há má vontade nos outros. Em contrapartida, os que são um pouco ignorantes são melhores professores porque compreendem a ignorância dos outros, põem-se facilmente no seu lugar e percebem o que é que eles não entendem.

P. - Parece, todavia, que as suas actividades como divulgador e ficcionista nem sempre são bem vistas pelos seus colegas educadores e académicos...
R. - Não podemos tentar viver como nos agrada e ao mesmo tempo comprazer os outros. Nunca me considerei um espectáculo para os outros e nem isso me preocupa demasiado.

P. - Fala-se muito, e há muito tempo, em educar para a leitura. É possível ensinar o prazer de ler?
R. - A leitura é, em primeiro lugar, um prazer e os prazeres não se impõem, comunicam-se por contágio. O prazer da leitura tem de ser contagiante. Mas hoje a leitura não é só leitura de livros. Quando eu tinha dez anos, não havia televisão, íamos ao cinema quando fazíamos anos ou uma vez por mês, e ou jogávamos futebol com os outros miúdos ou líamos. Eu não gostava de futebol. Hoje a literatura tem muitas alternativas: a Internet, os jogos de computador, os blogues, a música, etc. Também se lê na Internet. Para mim, ler é ler um livro e quero que o jornal que compro e leio de manhã seja em papel; lê-lo num ecrã não me dá o prazer que me dá um jornal de papel. Mas compreendo que talvez daqui a 20 anos toda a gente leia o jornal num ecrã. E talvez os livros também. Ou seja, o que é preciso é conservar vivo o prazer que a leitura encerra. Pensemos que muitos dos nossos antepassados, muito importantes intelectualmente, nunca leram um livro. Séneca nunca teve um livro, em sentido moderno, nas mãos. Aristóteles não saberia o que é um livro. No entanto, não são pessoas que não lessem e que não tivessem tido uma vinculação à literatura.

P. - No seu "Dicionário Filosófico", diz que "ler é já pensar". Não há uma sobrevalorização da leitura?
R. - Ler é pensar no sentido de que ver imagens não tem, obrigatoriamente, de estar relacionado com um pensamento articulado, enquanto ler sim. Ou seja, ler é, forçosamente, decifrar símbolos e toda a decifração de símbolos implica um complexo processo mental. Ver uma paisagem, inclusive um quadro de Rembrandt maravilhoso, podemos fazê-lo, digamos, quase com a mente em branco. Mas não podemos ler sem pensar. Claro que há obras artísticas que podem despertar em nós pensamentos mais sublimes do que a leitura de um livro trivial. Mas o pensamento pode ser trivial mas já é o início do pensamento superior.

P. - "O Grande Labirinto" pretende ser também uma parábola...
R. - Tem um pouco a intenção de parábola, mas não quis que tivesse uma lição excessivamente evidente. Porque me recordo sempre daquela opinião de Lord Chesterfield à saída de uma representação de "Otelo", de Shakespeare. Alguém lhe perguntou qual era o conteúdo, a lição da obra, e Lord Chesterfield disse: "As senhoras têm de ter muito cuidado com o que fazem com os seus lenços." Essa é uma das consequências que podemos tirar de "Otelo", mas não creio que seja a única...

P. - ... Uma parábola com moral ambígua.
R. - Quis que o final não fosse triunfal, sem mais. Os miúdos aprendem que têm de tentar lutar para resgatar os seus maiores, mas logo descobrem que talvez os adultos não queiram ser resgatados e que o que eles pensavam que era um grande perigo não é visto pelos outros como tal.

P. - Tendo lido "O Grande Labirinto", posso presumir que não tem visto o Campeonato Mundial de futebol...
R. - Não, não, não! Nunca fui um adepto do futebol...

P. - Prefere as corridas de cavalos...
R. - Sim, gosto muito de corridas de cavalos. E sempre consegui meter alguma história de cavalos nos meus livros anteriores. Nas corridas de cavalos são raros os nacionalismos, ninguém vai com bandeiras... Isso, para mim, é muito importante. Há uma relação mais individual, mais pessoal.

P. - Por falar em nacionalismos: como vê a evolução das autonomias "nacionais" em Espanha depois do novo "Estatuto" catalão?
R. - Os nacionalismos foram a grande desgraça da Espanha moderna. No século XIX todas as tentativas de fazer uma Espanha moderna, liberal e democrática tropeçaram nos nacionalismos. Isso passou-se no século XIX e no séxulo XX com a República e, desgraçadamente, passa-se hoje. O nacionalismo, que é o elemento mais reaccionário da política moderna, em Espanha uniu-se, estranhamente, à esquerda. A esquerda que sempre foi internacionalista! Hoje, coisas muito reaccionárias, como o estatuto catalão ou o que se prepara no País Basco, são vistas como avanços e como progressos esquerdistas, o que me parece absurdo. Já se viu que o estatuto catalão é um problema dos políticos. Após dois anos de lutas e confrontos, chega o referendo e mais de metade da população não vota porque não lhe interessa nada esse problema. Ou seja, é um falso problema. Oxalá não cause mais danos.

P. - Mas as reivindicações autonómicas passam também por problemas de ordem cultural e, especialmente, de ordem linguística...
R. - Que se respeitem as culturas mas não se inventem. Uma coisa é respeitar as línguas, outra coisa é haver perseguição de uma língua como o castelhano. São os falantes que têm direito à sua língua, não as línguas que têm direito a procurar falantes. Na Catalunha e no País Basco considera-se que quem tem direitos é a língua: a língua tem direito a ser falada. Eu creio que são os falantes que têm direito a falar a sua língua. Se os falantes decidem falar outra, têm o direito de falar outra. O nacionalismo crê que os direitos têm-nos o território, a língua, tudo menos as pessoas. Hoje, no País Basco ou na Catalunha, uma pessoa normal não pode educar os seus filhos na língua que preferir, tem de educá-los obrigatoriamente na língua do território, o que é um retrocesso das liberdades.

P. - O seu "Dicionário Filosófico" encerrava com uma citação de Peter Handke. O que pensa das recentes e polémicas censuras sobre ele exercidas?
R. - Há muitos autores que podemos admirar literariamente sem compartilharmos, em absoluto, os seus ideais políticos. É o caso de Céline. Mas por exemplo, e já que falamos de Handke e das suas simpatias por Milosevic: Harold Pinter, que acaba de ganhar o Prémio Nobel, tem também simpatias por Milosevic e teve simpatias por Saddam Hussein, que expressou várias vezes, e no entanto ninguém lhe tirou o Nobel; Saramago tem simpatias por Fidel Castro, que tão-pouco é um modelo de liberdades públicas. O que me parece injusto é que, no caso de Handke, retiraram uma obra de teatro que não tinha nada que ver com estes problemas. Para castigá-lo. Que sabemos nós sobre o que pensava Shakespeare da política, por exemplo? Isso não nos impede de lermos e vermos as suas obras com entusiasmo."

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