Chega-se a um ponto em que a melhor maneira de transformar as coisas é torná-las insuportáveis, atirá-las para uma situação-limite onde a única fuga possível é para a frente. Pouco antes de fazer 30 anos, entre a incomodidade e a obsessão – e muitas leituras acumuladas desde o curso de inglês que concluíra na Universidade da Florida –, Kate DiCamillo começou finalmente a tentar escrever. Primeiro, histórias curtas, que enviava para as editoras e revistas, recebendo em troca respostas invariáveis com que inaugurou uma magnífica colecção de rejeições. Depois, com a ajuda de uma bolsa literária, uma dessas histórias cresceu para algo maior: Por Causa de Winn-Dixie, chamou-lhe.
Por Causa de Winn-Dixie, o livro, a vida começou a parecer-se com o que ela tinha imaginado. Um rafeiro com nome de supermercado (Winn-Dixie é uma cadeia de lojas muito popular no sul dos Estados Unidos) tornou-se protagonista de um conto que quis ser, segundo a autora, «um hino aos cães, à amizade e ao Sul». Mas podíamos acrescentar: aos livros, às mães e às pessoas autênticas que verdadeiramente nos inspiram. Publicado em 2000, pela Candlewick Press, ganhou mais de 40 prémios na área da literatura infanto-juvenil, atribuídos em dezenas de estados, desde a Califórnia a Nova Iorque. O reconhecimento estendeu-se aos tops de vendas e cruzou o Atlântico, provando que Kate DiCamillo não era só uma escritora do Sul dos Estados Unidos.
Gótico Americano
E, no entanto, ela é mesmo uma escritora do Sul dos Estados Unidos. Nascida em Filadélfia, em 1964, aos cinco anos mudou-se para a Florida, onde cresceu, estudou e descobriu a sua «família literária». Por Causa de Winn-Dixie, a que se seguiu A Libertação do Tigre, publicado em 2001, são livros por onde passa a sombra do Southern Gothic, estilo impulsionado por toda uma fina linhagem de escritores do Sul (grande parte deles, mulheres), sob a presença tutelar de William Faulkner: Carson McCullers, Eudora Welty, Tennessee Williams, Harper Lee, Flannery O’Connor, Truman Capote, só para citar alguns. Se o contexto é regional – pequenas comunidades assoladas pelo abandono, famílias em serena desagregação, as ruínas de um passado orgulhoso perdido na guerra civil… –, as questões em causa são da maior amplitude moral. O que ficou nos livros de Kate DiCamillo, retirado o excesso de violência e grotesco dessa herança literária, foi um certo imaginário do desconforto; mas um desconforto em busca da sua cura e redenção, capaz de resistir a forças adversas e, ainda assim, manter a sua integridade singular. Na linguagem da psicologia, dir-se-á, talvez, resiliência.
Na literatura para crianças e jovens há uma longa tradição de heróis resilientes, desde Oliver Twist e outras torturadas personagens dickensianas à extraordinária Matilde, da obra homónima de Roald Dahl.
Se Kate DiCamillo já esclareceu em entrevistas que a mãe está viva e de boa saúde, também não faz segredo sobre o facto de o pai ter saído de casa quando ela tinha cinco anos, acontecimento que lhe marcou a história familiar e, é fácil de ver, a escrita. Não se pode dizer que as maiores figuras de referência saiam muito bem tratadas nos seus livros: se as mães desapareceram, por um motivo ou outro, os pais são emocionalmente limitados, absorvidos pelas suas ocupações ou pela luta diária da sobrevivência. Ainda assim, ela evita juízos fáceis, mostrando que as pessoas nunca são uma só coisa e temperando a complexidade dos sentimentos com humor e ternura.
Uma galeria de excêntricos
O contraponto afectivo a esta realidade pouco promissora é dado não só pelos animais, como por outras personagens capazes de criar laços genuínos de amizade – também elas assombradas pelos fantasmas da solidão.
O que tem em comum esta irmandade de excêntricos e inadaptados, tão bem decalcada do imaginário do Sul profundo? Entregues a si próprios, carregam o peso das memórias vividas e o esquecimento da América super-desenvolvida; pertencem à estirpe dos sobreviventes, não dos vencedores predestinados. Acima de tudo, contam consigo mesmos para se salvarem. Lembram-se do que aconteceu
E quanto à Lenda de Despereaux, «a história de um rato, uma princesa, uma colher de sopa e um carrinho de linhas»? Publicado nos Estados Unidos em 2003, vendeu um milhão de exemplares e recebeu o prestigiado prémio Newberry para o melhor livro infanto-juvenil de 2004, tornando-se rapidamente um «favorito» de escolas e bibliotecas graças ao seu potencial narrativo e simbólico. Para quem leu os dois títulos anteriores, a primeira reacção pode ser de estranheza. Desta vez, os cenários mudaram: não há parques de caravanas, motéis e cafetarias, bosques e estradas secundárias, mas sim um tempo e espaço localizados na pura fantasia, de cujo interior Kate DiCamillo fez nascer uma sofisticada intriga. O universo animista da autora expandiu-se e colocou um rato no lugar de protagonista – mas o seu nome, Despereaux, é já um sinal inequívoco de que também ele pertence à raça dos sobreviventes.
Primeiro, Despereaux enfrentará a traição da família dos ratos; depois, as terríveis ratazanas dos subterrâneos do castelo. Pelo meio, encontrará uma princesa chamada Ervilha, uma criadita que quer ser princesa e um rei que governa o reino com soberana e majestática apatia. E ainda uma ratazana com nome renascentista, tocada pela visão da luz e pela ideia do sublime, que é o exemplo dessas personagens «más» de quem só apetece gostar. E mais não se pode dizer, a bem da surpresa do leitor. Despereaux, o último (e o único) da ninhada, vai ter de provar que merece ter ficado para contar a história.
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DEZ PERGUNTAS A KATE DICAMILLO
Entre as muitas que gostaríamos de fazer. A escritora respondeu à Notícias Magazine por email.
Como foi crescer no Sul dos Estados Unidos?
Foi delicioso, porque o Sul é um lugar onde contar histórias tem um significado enorme. A capacidade de contar e de ouvir uma história ficou arreigada em mim através da cultura sulista.
Quais são os seus escritores favoritos?
Joan Aiken, Beverly Cleary, Isak Dinesen [NR: Karen Blixen], Anne Tyler.
Foi mais exigente escrever A Lenda de Despereaux do que Por Causa de Winn-Dixie e A Libertação do Tigre?
Foi muito mais difícil, porque parti de algo completamente diferente do que tinha feito até então e estava com medo. Além disso, foi o primeiro livro que escrevi com um enredo, e os enredos são coisas complicadas e cheias de truques.
Gostou do filme que foi feito a partir de Por Causa de Winn-Dixie?
Sim, muito. Acho que o filme resultou lindamente.
Quais são as suas palavras favoritas em inglês?
Umbrella (guarda-chuva). Portmanteau (mala). Lantern (lanterna). Forgiveness (perdão).
Como é que faz para encontrar a palavra certa?
Vou ao dicionário. Mas muitas vezes as palavras certas estão na minha cabeça.
Como é que lida com as críticas «não tão boas»?
Lembro-me do que Hemingway disse – e estou a parafraseá-lo: se acreditas neles quando te dizem que és bom, então tens que acreditar quando te dizem que és mau, por isso o melhor é não lhes ligares nenhuma.
Quando é que deixou o emprego na livraria?
Em 2002.
O que a impediu de se comprometer com a escrita durante tantos anos?
Eu sabia que queria ser escritora dez anos antes de começar a escrever. Coisas que me impediram: preguiça, medo, mais preguiça, mais medo. Triste, hã?
O que responde quando alguém a questiona sobre a necessidade de as crianças lerem histórias onde exista a tristeza, a raiva e a perda?
Digo que a tristeza, a raiva e a perda são parte da vida humana e, certamente, da vida de uma criança. As histórias precisam de reflectir a realidade, ao mesmo tempo que nos oferecem esperança, consolo e vontade de prosseguir."
1 comentário:
KERIDA AMIGA
..um óptimo texto sobre a escritora Kate.
Parabéns!
...não conhecia o teu blogue.
vou amanhã continuar a visita,
pois fiquei fã.
muito obrigada
xis létinha / La Salette Sá
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