Por que razão um grande número de histórias infantis começam por 'Era uma vez'? António Torrado, escritor que há 36 anos injecta histórias fantásticas na mente dos mais pequenos - com "120 livros e livrinhos publicados"- explica ao DN a razão "É a chave para entrar no mundo 'paralelo' da história que queremos contar. A partir desse 'Era uma vez' cabe toda a inverosimilhança, as histórias passam a ser aceites e justificadas. "
António Torrado sabe inúmeros truques para a resolução das histórias infantis, além dos indispensáveis encadear o enredo, ter em atenção motivos "provocadores", as "fórmulas mágicas", tão característicos desta narrativa. E porque para o escritor este mundo quase já não tem segredos, foi convidado a ser um dos quatro monitores para sensibilizar, ao longo de quatro sábados (às 18.00), o público de um atelier sobre Escrita Para Crianças, dirigido a adultos, numa iniciativa da Ler Para Querer, uma pequenina empresa que nasceu em 2004 e dá os primeiros passos no mercado da literatura infantil (ver texto em baixo).
No auditório da Livraria Ler Devagar, Bairro Alto, o escritor fala para as 20 mulheres que decidiram frequentar o atelier. Público com ouvidos de crianças, pelo menos para as partes em que ele começa a inventar a história de "uns grãos de areia, com uma grande experiência de vida, porque se calhar andaram na unha de um dinossauro, na sandália de um fenício, e um dia foram parar ao balde do menino que estava na praia..."
A plateia delirou com a passagem da interpretação de O Capuchinho Vermelho de Charles Perrault (1628-1703). "Pode dizer-se que é um grande acrescento de maldade quando se tira a avó da barriga do lobo para se encher de pedras e atirar o animal para dentro do poço, mas numa história não devemos ter receio de ir a situações dramáticas, desde que justificadas".
Ao longo da sessão o escritor vai parafraseando autores célebres que se aventuraram pelo imaginário infantil, e dando conselhos à plateia que deseja escrever para crianças. " Gustave Flaubert dizia que 'o que faz o colar não são as pérolas, mas o fio'. E Hans Christian Andersen escrevia 'o conto tem de deixar ouvir o contador'." Neste ponto, António Torrado é inflexível. Insiste "A voz do contador tem de se repercutir no que conta. O mais importante é a voz, a fala. Não há histórias iguais contadas por pessoas diferentes."
motivações. A urbanista Sofia Santos, 30 anos, é uma destas 20 mulheres. Ela e uma amiga designer gostariam de se iniciar nesta profissão. "Tenho uns apontamentos, e a minha presença aqui é mais para ouvir o que dizem as pessoas que já escrevem para crianças". Também Cristina Benedita, está ali à procura dessas mais-valias "Venho da área do espectáculo e por vezes conto histórias. O querer escrever é passar da oratória à escrita, que tem estruturas próprias. Eu vim à procura disso".
Eugénia Edviges, outra "aluna" que já tem um livro publicado e vai às escolas de Benavente trabalhar com crianças, assegura que "ao ouvir o António Torrado estou a aprender coisas que desconhecia completamente".
Este atelier Mãos Grandes, Letras Pequenas ainda vai no adro. Neste sábado, esteve presente apenas um monitor. Ainda passarão por lá, até à primeira semana de Julho, Margarida Fonseca Santos e Manuel António Pina. No próximo fim-de-semana será a vez de Rui Zink, com um registo diferente do de António Torrado. "Um dos poucos autores de livros infantis publicados nos EUA", como se define, vai desconcertar esta plateia. Vai dizer-lhes, como nos disse, que quem lê as histórias aos filhos "é a criada ucraniana" e vai ensiná-los a ganhar dinheiro, "com o pseudónimo de Madonna e um ilustrador português...".
Livraria especializa-se só nos livros infantis com qualidade
A livraria Ler Para Querer funciona num espaço próprio da Livraria Ler Devagar. É a concretização de um projecto da arqueóloga Mafalda Borges Coelho e da linguista Catarina Magro, que há cerca de um ano decidiram lançar um espaço especializado em literatura infanto-juvenil, para preencher o que consideraram ser uma lacuna em Lisboa, à excepção, na altura, da secção infantil da Barata em Campo de Ourique. [Agora existem também as livrarias História Com Bicho (Barcarena), Pequeno Herói (Lisboa) e Salta Folhinhas (Porto)].
A oferta não é apenas dos dois mil títulos criteriosamente seleccionados, "escolhemos os livros um a um, em termos de textos e ilustrações, e organizamo-los de forma a que os clientes se orientem". A empresa, que se define vocacionada para a promoção do livro e da leitura, também organiza feiras do livro, sessões de leitura e dramatização de contos infantis, além de visitas de autor. E às quartas-feiras, pelas 18.00, faz-se silêncio no livraria para se ouvir contar histórias.
"O nosso balanço é uma curva ascendente ligeira. Criar um público e fidelizá-lo leva o seu tempo. A procura por parte dos pais tem aumentado e dizem-nos encontrar aqui obras que não estão nas grandes livrarias. O nome da nossa já não cai no vazio. E desempenhamos um papel no próprio Bairro Alto", contam ao DN.
Os vendedores acham-nas "esquisitas", porque ali não entram livros da Disney, nem da Madonna.
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