2006/01/07

"Novos talentos no infanto-juvenil"

"Alexandre Parafita

Alexandre Parafita é investigador de literatura oral, professor e autor de mais de 30 obras, sendo as mais recentes: "Chovia Ouro no Bosque" (Porto Editora), "Branca-Flor, o Príncipe e o Demónio" (Asa), "Histórias de Arte e Manhas" (Texto Editores), "O Conselheiro do Rei" (Impala), editado também em castelhano, e "Contos de Animais com Manhas de Gente" (Âmbar).
De 2005, retém como positivo "o despontar de alguns autores jovens, bastante promissores, seja ao nível da narração escrita, seja ao nível da ilustração, e que certamente garantirão a sobrevivência de uma literatura infanto-juvenil de qualidade no futuro".
O primeiro título escolhido foi "A Rosinha, o Mar e os Sonhos" (Gailivro) de Rosário Alçada Araújo (escrita) e Catarina França (ilustração), "pela sintonia estética que partilham". Na obra, "de enredo encantatório, atravessado pela aventura e pelo mistério do mar e dos tesouros, ecoam, inteligentemente, as reminiscências dos velhos contos de fadas, onde não falta o perfil de uma "Branca-Flor" reinventada em cada uma das personagens femininas da história".
Alexandre Parafita acrescenta ainda: "Para a criança que vive na fase de se apropriar de modelos, de distinguir de "motu proprio" as dicotomias essenciais com que a vida a confronta, tais como o bem e o mal, a fidelidade e a hipocrisia, a coragem e a cobardia, este livro é, sem dúvida, um amigo valioso. Valioso pela natureza das mensagens que segreda ao inconsciente do pequeno leitor."
Em conjunto, autora e ilustradora assinaram também "Somos Diferentes" (Impala) e "A História de Uma Pequena Estrela" (Gailivro).
Para um nível etário um pouco mais elevado, o autor destaca "Eldest" (2.º volume da Trilogia da Herança), de Christopher Paolini. "Todo o livro conduz a uma hábil e descomplexada incursão pelo mundo do fantástico, à semelhança do que vimos com as sagas de Harry Potter ou do Senhor dos Anéis. A particularidade de ser um autor muito jovem (19 anos) a dar vida e coerência a um enredo complexo, mas sedutor, onde abundam seres insólitos como dragões, elfos, anões, serpentes, espectros, feiticeiras e outros estereótipos do fantástico, torna este livro particularmente interessante para um público jovem. Um público facilmente atraído por narrativas onde impera a perspectiva mitológica do herói, envolvido num jogo permanente de intimidações, que vai superando em actos sucessivos de transgressão responsável."
Também para estas idades, Parafita escolhe "Fábulas de Bocage", de José Jorge Letria (texto da Introdução) e André Letria (ilustração), "uma edição com muita dignidade, que, ao mesmo tempo, comemora os 200 anos da morte do grande poeta setubalense". Destaca ainda esta obra "pelo muito que ela contribui para reerguer, aos olhos dos mais jovens, uma das mais belas facetas de um poeta que, no imaginário colectivo, ficou gravado pela sua vida boémia e errante. Nestes "versos com moral" de Bocage, cuidadosamente seleccionados e enquadrados por José Jorge Letria, e magnificamente ilustrados por André Letria, ecoa uma consciência crítica que não se esgotou no tempo e que, por vezes, foi trazida na voz de animais para melhor chegar aos humanos".


A Rosinha, o Mar e os Sonhos
Autor Rosário Alçada Araújo
Ilustrador Catarina França
Editor Gailivro
36 págs., 8,90 euros

Eldest
Autor Christopher Paolini
Tradutores Andrea Alves Silva e Vera Falcão Martins
Editor Gailivro
814 págs., 19,90 euros

Fábulas de Bocage
Autor da Introdução José Jorge Letria
Ilustrador André Letria
Editor Âmbar
42 págs., 17,85 euros


Marta Torrão

Marta Torrão é ilustradora e venceu o Prémio Nacional de Ilustração relativo a 2004 com o livro "Come a Sopa, Marta!" (Bichinho de Conto), atribuído por unanimidade pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e pela Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil. Normalmente usa técnica mista nos seus trabalhos (guache e colagens) e também ilustra para a imprensa, numa colaboração semanal com a revista "Notícias Magazine".
O primeiro livro que escolheu foi "O Quê Que Quem", do ilustrador Gémeo Luís e com textos de Eugénio Roda (Edições Eterogémeas). "Seleccionei este livro pela originalidade da técnica, corte no papel, mas também pelas magníficas ilustrações que dela resultaram. Ricas em pormenores poéticos, deixando por definir onde começam e onde acabam, criando imagens dentro de uma única imagem. Uma espécie de jogo onde com toda a atenção se descobrem elementos que vivem para lá do texto." É um livro bilingue (português e inglês), com o interessante subtítulo "Notas de rodapé e de corrimão".
A segunda obra seleccionada foi "A Máquina Infernal", do ilustrador e desta vez também autor Alain Corbel. "Alain associou a sua representação da realidade ao imaginário inocente de um menino, chamado Tim. O resultado são elementos verdadeiramente surpreendentes, como quando Tim percebe que a sua máquina infernal se pode transformar em algo bom e mágico aos olhos de uma outra criança, neste caso uma menina, e que o mesmo pode acontecer com as palavras."
Marta Torrão considera ainda que há "detalhes harmoniosos presentes em pequenas coisas, como o vestido da personagem, que remete para a renovação e nascimento. Uma bonita união entre a escrita e o desenho".
Por último, elege "Uma Estrela", ilustrado por Cristina Valadas e escrito por Manuel Alegre. "Escolhi este livro pela quase ausência de cores nas ilustrações, o que é bastante curioso, principalmente por ser uma obra que aborda o tema do Natal e por estarmos habituados aos livros cheios de cores. Neste caso é diferente e o facto de a ilustradora nos dar uma nova perspectiva do Natal ganha pela diferença, criando um universo de figuras simples, mas cheias de encanto."


O Quê Que Quem/ Notas de Rodapé e de Corrimão
Autor Eugénio Roda
Tradução para Inglês Ana Saldanha
Ilustrador Gémeo Luís
Editor Edições Eterogémeas
22 págs., 9 euros

A Máquina Infernal
Autor e ilustrador Alain Corbel
Editor Caminho
32 págs., 12,60 euros

Uma Estrela
Autor Manuel Alegre
Ilustrador Cristina Valadas
Editor Dom Quixote
28 págs., 13,30 euros"

Ilse Losa morreu

Pelo seu manifesto interesse pedagógico, reproduzo o texto que o jornal Público edita hoje nas suas páginas:

"
Ilse Losa (1913-2006) Uma escritora entre dois mundos

Morreu ontem, aos 92 anos, a escritora portuguesa de ascendência alemã Ilse Losa, um dos nomes mais significativos da nossa literatura juvenil, mas cuja obra se estende ao romance, ao conto e à crónica. Vivia no Porto desde 1934, ano em que chegou a Portugal, fugindo da ascensão nazi. Por Luís Miguel Queirós

Embora existam precedentes célebres, não é nada vulgar que alguém consiga tornar-se um autor de reconhecida relevância numa língua com a qual só contactou já na idade adulta. É esse o caso de Ilse Losa, que poucas palavras conheceria em português quando a sua condição de judia a obrigou a deixar a Alemanha e a procurar refúgio no Porto, onde desembarcou em 1934, aos 21 anos.
Do tempo que viveu no seu país natal, desde a infância passada com os avós numa aldeia próxima de Osnabrück até à sua fuga de uma Alemanha que acabara de levar os nazis ao poder, deixou-nos um notável testemunho no seu romance de estreia, O Mundo em que Vivi, escrito já directamente em português e publicado em 1949. Ficção fortemente autobiográfica, o livro conta a história de uma rapariga judia, Rose Frankfurter - loura e de olhos azuis, tal como Ilse Losa -, que escapa in extremis ao horror dos campos de concentração.
Foi também literalmente no último momento que Ilse Lieblich (o seu apelido de solteira) abandonou a Alemanha. A Gestapo tivera acesso a uma carta em que Ilse criticava Hitler e, após um duro interrogatório, ordenou-lhe que voltasse a apresentar-se seis dias mais tarde. Se tivesse comparecido, o campo de concentração era o destino mais do que provável. Ilse fugiu nesse intervalo. O seu irmão mais velho já vivia no Porto, e o mais novo chegaria pouco depois dela.
Em 1935, casou-se com Arménio Losa (1908-1988), um dos mais relevantes arquitectos modernistas portugueses, e adquiriu a nacionalidade portuguesa.
Óscar Lopes foi um dos primeiros a reconhecer a importância do romance de estreia de Ilse Losa, sublinhando, em O Mundo em que Vivi, a vivacidade do retrato da sociedade alemã nos anos que vão do final da Primeira Guerra até à vitória dos nazis, mas elogiando, também, a sua "escrita inexcedivelmente sóbria e transparente".
No mesmo ano de 1949, Ilse Losa publica Faísca Conta a Sua História, a primeira das cerca de duas dezenas de narrativas e peças de teatro que escreveu para crianças. Em 1982, recebe um prémio da Gulbenkian pelo livro Na Quinta das Cerejeiras, e a mesma fundação atribui-lhe, dois anos mais tarde, desta vez pelo conjunto da sua obra, o Grande Prémio de Literatura para Crianças.
Segundo José António Gomes, professor e crítico de literatura infantil, "Ilse Losa introduziu o realismo na literatura para crianças em Portugal". Num depoimento ontem prestado ao PÚBLICO, recorda ainda que a autora foi pioneira na atenção aos temas ambientais, no livro Beatriz e o Plátano (1976), e recorda "a magnífica parábola sobre a perseguição dos judeus" que constitui o conto Silka, premiado em 1989 pela Bienal de Bratislava, que atribuiu a Maçã de Ouro ao trabalho de Manuela Bacelar, ilustradora de várias obras da escritora. "A Ilse é uma referência no meu trabalho e na minha vida, e lamento muito o seu desaparecimento e o facto de ter sido tão esquecida", disse ao PÚBLICO Manuela Bacelar.
Para José Jorge Letria, Ilse Losa "libertou a literatura para a infância do estigma de uma literatura menor". E Luísa Dacosta realça o facto de a autora se ter "aventurado a escrever em português, o que talvez a fizesse sentir-se uma estrangeira mesmo na língua".
Estrangeira sentiu-se seguramente nesse Portugal salazarista dos anos 30, que descreve no romance Sob Céus Estranhos (1962), cujo protagonista é um judeu alemão refugiado no Porto e que nos dá um magnífico retrato da provinciana "pasmaceira" (termo que o próprio herói do livro utiliza) que era a cidade no final dos anos 40.
Entre as muitas obras de Ilse Losa, podem destacar-se o romance Rio Sem Ponte (1952), ou as narrativas de Aqui Havia Uma Casa (1955), O Barco Afundado (1979) e Caminhos Sem Destino (1991). Ou ainda o livro de crónicas de viagem Ida e Volta. À Procura de Babbitt (1960). Colaboradora de muitos jornais e revistas, Ilse Losa foi também cronista do PÚBLICO, onde manteve uma coluna mensal, desde o lançamento do jornal, em 1990, até finais de 1992.
Além da sua própria obra, Ilse Losa deixa-nos um conjunto de importantes traduções, quer de autores alemães, como Brecht, Erich Kästner, Max Frisch ou Anna Seghers, quer de escritores portugueses que traduziu para a sua língua natal. Com Óscar Lopes, organizou uma antologia da moderna lírica portuguesa, editada em Berlim em 1969. É ainda dela a tradução portuguesa do célebre Diário de Anne Frank.
Apesar de haver decerto alguma verdade no lamento de Manuela Bacelar, Ilse Losa não está assim tão esquecida. A publicação, em 1990, da tradução alemã de O Mundo em que Vivi despertou um grande interesse pela sua obra na Alemanha, cujo Governo a condecorou em 1991 - Portugal outorgou-lhe em 1995 a Ordem do Infante D. Henrique -, e também no seu país de acolhimento não faltam estudos sobre a sua obra, ainda que geralmente limitados a artigos de jornal, ensaios dispersos por obras colectivas ou entradas de dicionários. Um bom ponto de partida é o livro Paisagens da Memória - Identidade e Alteridade na Escrita de Ilse Losa (2001), de Ana Isabel Marques, publicado em 2001, que, além da estimulante leitura que faz da obra de Ilse Losa, inclui uma bibliografia exaustiva dos textos dedicados à autora.
O funeral é hoje, pelas 10h30, no cemitério portuense do Prado do Repouso. com Rita Pimenta"