Era uma vez... histórias de encantar
Há serões temáticos em que os meninos vão de pijama e saco-cama para ouvir e, também, contar históriasAna César Costa
Na Bichinho do Conto, todos os fins-de-semana, a partir das 16.00, há a Hora do Conto, geralmente com a própria Mafalda. Sempre que possível, aparecem também os autores, "pessoas que conseguem contar histórias maiores do que o mundo dentro de um livro", explica Mafalda. Durante a semana, a livraria reserva a Hora do Conto para as escolas (por marcação). O Bichinho do Conto organiza ainda serões temáticos infantis, "uma espécie de maratonas pequeninas que duram horas", em que os pais trazem os meninos vestidos de pijama e com um saco-cama quentinho. "Nesses serões temos contadores convidados, mas a piada é que pais e filhos também começaram a contar", adianta Mafalda Milhões. Foi o que aconteceu com o Simão, de sete anos, e a Rebeca, de oito, ouvintes regulares que já conseguem cativar uma plateia de 150 pessoas com as suas histórias lidas ou inventadas.
"Basta olhar para eles para perceber que o nosso trabalho está a funcionar", comenta a responsável do espaço. São crianças que se sentem "em casa", até porque aqui têm as guloseimas que gostam, sumos, groselhas, bolos e rebuçados para acompanhar a leitura.
A livraria que era botequim. Uma exposição permanente dedicada a Natália Correia faz parte, desde domingo, da livraria Pequeno Herói, à Graça, em Lisboa. Isto porque a primeira obra da autora datada de 1945 foi precisamente um livro infantil, chamado A Grande Aventura de um Pequeno Herói. E também porque a livraria está localizada no edifício do antigo botequim da poetisa, dedicado a tertúlias e conotado com o combate ao fascismo ainda antes do 25 de Abril.
O local continua a ser ponto de encontro obrigatório para quem quer ouvir uma boa história. Mas agora o que se escuta são histórias infantis interpretadas por Elsa Serra, desde sempre fascinada por livros e ela própria autora de O Senhor das Barbas Brancas.
Aberta em Fevereiro deste ano, a Pequeno Herói aposta forte na literatura infantil e juvenil, reservando apenas algumas prateleiras para os livros "de adultos".
Sentados em almofadas coloridas espalhadas pelo chão, as crianças mexem à vontade nos livros expostos, observam as ilustrações, estudam as formas das letras, con- versam e brincam. Em dez meses de actividade não houve mais do que um ou dois livros rasgados, garante Elsa, que dá mostras de toda a sua criatividade na Hora do Conto, sempre às 16.00, todos os sábados e domingos. Os alunos da zona aproveitam os dias de semana para ouvirem as suas histórias, na livraria ou até na própria escola. Uma actividade já antes concretizada pela autora e empresária através do projecto CLIC (Clube de Literatura, Ilustração e Companhia) e da Associação Histórias Desenhadas, fundada por Elsa Serra e por Margarida Fonseca Santos, com o objectivo de incentivar a leitura e a escrita, desenvolver a criatividade e promover o crescimento equilibrado da criança.
A Pequeno Herói organiza ainda ateliers de escrita criativa, ilustrações e dramatização, para alunos do pré-primário ao terceiro ciclo, divididos por temas e idades. Realiza também encontros com autores e exposições de pintores e ilustradores infantis, entre outras actividades. A ideia de trazer novos contadores às livrarias vindos de outras paragens, incluindo da Galiza, está por realizar por falta de verbas. Mas, entre sessões de contos e feiras do livro em escolas, as aventuras não param de acontecer.
A hora do conto
São 208 as bibliotecas municipais de todo o país (não incluindo as da capital) apoiadas pelo Instituto do Livro, através de 250 a 300 acções por ano inseridas no programa Itinerâncias. Só no primeiro semestre de 2005 contabilizaram-se cem acções nesta área, ou seja, formação de técnicos, espectáculos, concursos e outros eventos. Cada biblioteca é autónoma para organizar actividades como a Hora do Conto, quando um grupo de crianças se reúne para ouvir uma história contada por um animador cultural, não existindo estatísticas. Por isso é difícil calcular o número de crianças que tem acesso a um contador de histórias, figura outrora omnipresente numa comunidade. Na formação dos actuais animadores, que percorrem bibliotecas e escolas com o objectivo de incentivar o gosto pela leitura, insiste-se em "trabalhar a partir do livro, explorá-lo de diversas maneiras", explica Maria Cabral, do departamento de Promoção da Leitura.
Ouvir ler e interpretar uma história é mais do que estimular a imaginação das crianças. É cativá-las para a leitura em si mesma, seja de um conto, seja, mais tarde, de um texto técnico. E é uma actividade tão mais importante quando se sabe que, em 30 países da OCDE, Portugal é o 28.º em número de leitores. "A maior parte sabe ler (juntar letras) mas grande parte acima dos 15 anos não atinge o nível 2 de literacia, isto é, não consegue compreender o que está escrito", constata a técnica. "O público português não é um público leitor", confirma a proprietária da Bichinho do Conto, que indica que, noutros países europeus, "a hora do conto é obrigatória nas escolas". Também em Portugal, iniciativas como esta podem ajudar a aumentar o número de leitores e subir o nível de literacia entre a população.~
Incentivar os novos leitores e criar hábitos de leitura desde cedo
A Bichinho do Conto, na Fábrica da Pólvora, em Oeiras, é a primeira livraria totalmente dedicada às crianças em Portugal. Um espaço que nasceu há três anos "da vontade de querer estar próxima e querer formar leitores", explica Mafalda Milhões, editora, livreira e também autora e ilustradora de Perlimpipim, Perlimpimpão. Transmontana, quis trazer para a capital "a tradição dos contadores de histórias", uma herança familiar legada pelo avô, que era contador de histórias e pela mãe, professora primária que recorria às histórias para explicar os problemas de matemática.
Contar histórias a crianças que nunca abriram um livro é o propósito de Mafalda, responsável pela introdução da hora do conto na maior parte das bibliotecas de Oeiras. No entanto, o seu objectivo é "abrir no interior", esperando que o exemplo da Bichinho do Conto sirva de inspiração a mais pessoas.
Também Elsa Serra, da livraria Pequeno Herói, na Graça, quer partilhar com os mais novos o prazer de folhear um livro, de o ler e interpretar. Explorar "a escrita ou a dimensão da leitura" é o que motiva a responsável, com alguns anos de currículo na área da literatura infantil.
O aparecimento de espaços como estes vem confirmar uma tendência de mercado já descoberta pelas boas livrarias, que dedicam aos mais novos pequenas mesas e cadeiras rodeadas de livros coloridos, que se tornam tão apelativos como outras brincadeiras. É o caso da Fnac, Bulhosa, Almedina, Bertrand e outras. Mas a Pequeno Herói ou a Bichinho do Conto vão mais além, ao organizarem encontros, ateliers e outros eventos específicos para este público.
Para muitos, "é um primeiro contacto com o universo da leitura", considera Marcelo Teixeira, coordenador editorial da Oficina do Livro. Um contacto a aprofundar, uma vez que "vai havendo uma oferta cada vez maior por parte das editoras, não só no número, mas na qualidade desses livros".
Numa sociedade que vive da imagem e onde a predominância de filhos únicos com bastante poder de decisão, "os livros têm que ser vendidos de outra maneira", defende o editor. A par da descoberta de novos autores, Marcelo Teixeira destaca o aparecimento de "um leque de belíssimos ilustradores" que dão forma e cor às histórias infantis.
A ficha
BICHINHO DO CONTO Morada. Fábrica da Pólvora de Barcarena, Edifício 25, Barcarena, Oeiras Tel. 214 303 478 PEQUENO HERÓI Morada. Largo da Graça, 79 Lisboa Tel. 218 861 776 |
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