2005/11/21

Livrarias e outras coisas mais

Era uma vez... histórias de encantar

Há serões temáticos em que os meninos vão de pijama e saco-cama para ouvir e, também, contar histórias

Ana César Costa

"Vamos contar a nossa história", grita alegremente a Inês. Faz parte de um grupo de 30 crianças sentadas no chão da livraria Bichinho do Conto, em Oeiras. Algumas delas estão ao colo dos pais, ansiosas pela hora do conto. Tem então início o ritual. Seguindo uma sugestão de Mafalda Milhões, a contadora de histórias, todos respiram fundo até o silêncio reinar na pequena sala. É dia de ler uma história nova, chamada A-Princesa-Que-Tinha-Uma-Luz-Por-Dentro e estão presentes o autor, o ilustrador e o editor no livro.

Na Bichinho do Conto, todos os fins-de-semana, a partir das 16.00, há a Hora do Conto, geralmente com a própria Mafalda. Sempre que possível, aparecem também os autores, "pessoas que conseguem contar histórias maiores do que o mundo dentro de um livro", explica Mafalda. Durante a semana, a livraria reserva a Hora do Conto para as escolas (por marcação). O Bichinho do Conto organiza ainda serões temáticos infantis, "uma espécie de maratonas pequeninas que duram horas", em que os pais trazem os meninos vestidos de pijama e com um saco-cama quentinho. "Nesses serões temos contadores convidados, mas a piada é que pais e filhos também começaram a contar", adianta Mafalda Milhões. Foi o que aconteceu com o Simão, de sete anos, e a Rebeca, de oito, ouvintes regulares que já conseguem cativar uma plateia de 150 pessoas com as suas histórias lidas ou inventadas.

"Basta olhar para eles para perceber que o nosso trabalho está a funcionar", comenta a responsável do espaço. São crianças que se sentem "em casa", até porque aqui têm as guloseimas que gostam, sumos, groselhas, bolos e rebuçados para acompanhar a leitura.

A livraria que era botequim. Uma exposição permanente dedicada a Natália Correia faz parte, desde domingo, da livraria Pequeno Herói, à Graça, em Lisboa. Isto porque a primeira obra da autora datada de 1945 foi precisamente um livro infantil, chamado A Grande Aventura de um Pequeno Herói. E também porque a livraria está localizada no edifício do antigo botequim da poetisa, dedicado a tertúlias e conotado com o combate ao fascismo ainda antes do 25 de Abril.

O local continua a ser ponto de encontro obrigatório para quem quer ouvir uma boa história. Mas agora o que se escuta são histórias infantis interpretadas por Elsa Serra, desde sempre fascinada por livros e ela própria autora de O Senhor das Barbas Brancas.

Aberta em Fevereiro deste ano, a Pequeno Herói aposta forte na literatura infantil e juvenil, reservando apenas algumas prateleiras para os livros "de adultos".

Sentados em almofadas coloridas espalhadas pelo chão, as crianças mexem à vontade nos livros expostos, observam as ilustrações, estudam as formas das letras, con- versam e brincam. Em dez meses de actividade não houve mais do que um ou dois livros rasgados, garante Elsa, que dá mostras de toda a sua criatividade na Hora do Conto, sempre às 16.00, todos os sábados e domingos. Os alunos da zona aproveitam os dias de semana para ouvirem as suas histórias, na livraria ou até na própria escola. Uma actividade já antes concretizada pela autora e empresária através do projecto CLIC (Clube de Literatura, Ilustração e Companhia) e da Associação Histórias Desenhadas, fundada por Elsa Serra e por Margarida Fonseca Santos, com o objectivo de incentivar a leitura e a escrita, desenvolver a criatividade e promover o crescimento equilibrado da criança.

A Pequeno Herói organiza ainda ateliers de escrita criativa, ilustrações e dramatização, para alunos do pré-primário ao terceiro ciclo, divididos por temas e idades. Realiza também encontros com autores e exposições de pintores e ilustradores infantis, entre outras actividades. A ideia de trazer novos contadores às livrarias vindos de outras paragens, incluindo da Galiza, está por realizar por falta de verbas. Mas, entre sessões de contos e feiras do livro em escolas, as aventuras não param de acontecer.


A hora do conto

São 208 as bibliotecas municipais de todo o país (não incluindo as da capital) apoiadas pelo Instituto do Livro, através de 250 a 300 acções por ano inseridas no programa Itinerâncias. Só no primeiro semestre de 2005 contabilizaram-se cem acções nesta área, ou seja, formação de técnicos, espectáculos, concursos e outros eventos. Cada biblioteca é autónoma para organizar actividades como a Hora do Conto, quando um grupo de crianças se reúne para ouvir uma história contada por um animador cultural, não existindo estatísticas. Por isso é difícil calcular o número de crianças que tem acesso a um contador de histórias, figura outrora omnipresente numa comunidade. Na formação dos actuais animadores, que percorrem bibliotecas e escolas com o objectivo de incentivar o gosto pela leitura, insiste-se em "trabalhar a partir do livro, explorá-lo de diversas maneiras", explica Maria Cabral, do departamento de Promoção da Leitura.

Ouvir ler e interpretar uma história é mais do que estimular a imaginação das crianças. É cativá-las para a leitura em si mesma, seja de um conto, seja, mais tarde, de um texto técnico. E é uma actividade tão mais importante quando se sabe que, em 30 países da OCDE, Portugal é o 28.º em número de leitores. "A maior parte sabe ler (juntar letras) mas grande parte acima dos 15 anos não atinge o nível 2 de literacia, isto é, não consegue compreender o que está escrito", constata a técnica. "O público português não é um público leitor", confirma a proprietária da Bichinho do Conto, que indica que, noutros países europeus, "a hora do conto é obrigatória nas escolas". Também em Portugal, iniciativas como esta podem ajudar a aumentar o número de leitores e subir o nível de literacia entre a população.~




Incentivar os novos leitores e criar hábitos de leitura desde cedo

A Bichinho do Conto, na Fábrica da Pólvora, em Oeiras, é a primeira livraria totalmente dedicada às crianças em Portugal. Um espaço que nasceu há três anos "da vontade de querer estar próxima e querer formar leitores", explica Mafalda Milhões, editora, livreira e também autora e ilustradora de Perlimpipim, Perlimpimpão. Transmontana, quis trazer para a capital "a tradição dos contadores de histórias", uma herança familiar legada pelo avô, que era contador de histórias e pela mãe, professora primária que recorria às histórias para explicar os problemas de matemática.

Contar histórias a crianças que nunca abriram um livro é o propósito de Mafalda, responsável pela introdução da hora do conto na maior parte das bibliotecas de Oeiras. No entanto, o seu objectivo é "abrir no interior", esperando que o exemplo da Bichinho do Conto sirva de inspiração a mais pessoas.

Também Elsa Serra, da livraria Pequeno Herói, na Graça, quer partilhar com os mais novos o prazer de folhear um livro, de o ler e interpretar. Explorar "a escrita ou a dimensão da leitura" é o que motiva a responsável, com alguns anos de currículo na área da literatura infantil.

O aparecimento de espaços como estes vem confirmar uma tendência de mercado já descoberta pelas boas livrarias, que dedicam aos mais novos pequenas mesas e cadeiras rodeadas de livros coloridos, que se tornam tão apelativos como outras brincadeiras. É o caso da Fnac, Bulhosa, Almedina, Bertrand e outras. Mas a Pequeno Herói ou a Bichinho do Conto vão mais além, ao organizarem encontros, ateliers e outros eventos específicos para este público.

Para muitos, "é um primeiro contacto com o universo da leitura", considera Marcelo Teixeira, coordenador editorial da Oficina do Livro. Um contacto a aprofundar, uma vez que "vai havendo uma oferta cada vez maior por parte das editoras, não só no número, mas na qualidade desses livros".

Numa sociedade que vive da imagem e onde a predominância de filhos únicos com bastante poder de decisão, "os livros têm que ser vendidos de outra maneira", defende o editor. A par da descoberta de novos autores, Marcelo Teixeira destaca o aparecimento de "um leque de belíssimos ilustradores" que dão forma e cor às histórias infantis.


A ficha

BICHINHO DO CONTO

Morada. Fábrica da Pólvora de Barcarena, Edifício 25, Barcarena, Oeiras

Tel. 214 303 478

PEQUENO HERÓI

Morada. Largo da Graça, 79 Lisboa

Tel. 218 861 776



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